Como sobrevivi a uma semana sem smartphone


Há algum tempo ouço dizer que a internet chegou para ficar. Nunca duvidei – ainda mais depois de ver meu primeiro JPEG pornô – mas este é um sentimento que apenas se solidificou de verdade após o advento da mobilidade.

Os saudosistas e conservadores dos valores de outrora são os primeiros a bradar: “é o fim da discussão de boteco!”

Claro que Omã é um país. Prefiro poder conferir a informação com acesso a todas as bibliotecas do mundo em poucos cliques e partir pra próxima pauta, do que divagar por horas num assunto inflamado pelo álcool e esgotado pela ignorância.

 
2005

2011

 
Com um pouco de prática você consegue descobrir o nome daquele ator que fez aquele filme, com o mínimo de referências. Outro dia achei uma música sem saber uma única palavra da letra, só cantarolando o refrão e transcrevendo vocalizações absurdas no formulário de pesquisa do Google. E como último recurso ainda tinha o Shazaam.

Como ser contra o milagre da tecnologia?

O comportamento humano sempre estará em transformação, e sempre será difícil para alguns de seus indivíduos romperem com as tradições, de fato. Se por um lado, por vezes, perdemos um pouco do contato presencial ou físico, por outro, nunca estivemos tão conectados uns com os outros. Que o digam os milhares de pessoas com quem converso diariamente – o que não seria possível em outros tempos sem a ajuda de alto-falantes.

Por isso, por mais que eu considere certas comodidades da vida moderna um luxo, e que qualquer reclamação sobre a ausência de um equipamento eletrônico não passe da mais vergonhosa modalidade de male tears classe-média-sofre, sou obrigado a confessar que já me encontro em tal nível de envolvimento com a ferramenta smartphone que praticamente tive que me entregar a uma verdadeira jornada de auto-conhecimento quando me vi sem ele.

Ao longo de uma longa semana.

 
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Pra muitas pessoas, perder o smartphone é praticamente rotineiro, ou até mesmo irrelevante.
Pra mim não.

Pobre que sempre fui, sou cuidadoso com nossos espelhinhos neocolonizadores na proporção em que eu sou desastrado e eles, frágeis. Só perdi dois aparelhos, uma vez quando fui jogado por amigos em uma piscina e o abuso de substâncias entorpecentes me impedia de conseguir falar que o celular estava no meu bolso, e noutra vez em que fui assaltado, num show do Planet Hemp. Claro. Esses maconheiros são uns marginais.

Em ambas ocasiões eu tinha motivos (químicos lúdicos) para nem me importar muito com a trágica perda, mas desta vez sofri como em compadecimento a um ser humano quando percebi que meu celular havia dado o último salto rumo ao desconhecido.

E compartilhei meu luto, no broadcast da vida, essas tais redes sociais – meio constrangido de meu próprio sofrimento pequeno-burguês.

 
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Sem mais delongas, gostaria agora de compartilhar com vocês as reflexões oriundas deste estudo antropológico involuntário em que submergi subitamente a partir do momento em que não mais pude contar com o tablete mágico para operar milagres de dentro do meu bolso.

Ao contrário dos artigos e listas meramente baseados em especulação, eis uma amostra do mais empírico estranhamento contemporâneo:

 
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Relógio

Começo pela função mais singela, mas que considero uma grande transformadora de paradigmas. Relógios de pulso completam a metáfora do aprisionamento do tempo com seu formato de algema. Não consigo ser feliz tendo tão literalmente à mão um lembrete de que estou envelhecendo e perdendo instantes preciosos da vida a cada fração de segundo. Prefiro o trabalho de lançar-me ao bolso para conferir as horas, como faziam nossos antepassados com seus modelos mais antigos e elegantes de relógio. Nesta semana de restrições, vi-me quase totalmente liberto do conceito de horário. Apenas quando tive que viajar, civilizadamente com hora marcada, é que precisei apelar para a mais primitiva das modalidades de interação social: “Que horas são, por favor?”. 100% dos entrevistados se assustaram com a pergunta e/ou se embananaram na hora de prestar a informação. A culpa deve ser dos ponteiros analógicos que adornam seus braceletes meramente decorativos.


 
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Alarme

Despertar para um novo dia sempre foi algo meio traumático pra mim. Sinto que o sistema só termina de inicializar depois do almoço, portanto, os primeiros instantes de alvorada são sempre obscuros. Resolvi meus problemas disciplinares com 5 alarmes programados no telefone acoplado a uma caixa de som. Sem dispor de tal recurso, nesta fatídica semana, tive que contar com a prestatividade de meus familiares para me acordarem com carinho e calor humano – e eventualmente, café da manhã em uma bandeja. Nada mal.


 
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Música

No carro ou durante as poucas caminhadas que faço, sou acostumado a ouvir as músicas do celular, um hábito quase tão vintage quanto ouvir rádio FM. Pelo menos no carro tive a pretensão de resgatar um velho hábito da era pré-smartphones e reouvi todos os CDs que ainda me restaram enquanto mídia física. Todos os cinco. Por algum motivo, enjoei rápido e comecei a prestigiar o som do silêncio em diversas situações.


 
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Calculadora

Sou bom de matemática e até consigo pensar rápido na pressão de uma prova ou exercício temporizado. Mas não me peça a resposta de um cálculo mental de supetão, mesmo que extremamente fácil. Ainda mais com plateia. Ainda mais envolvendo dinheiro. Dois mais dois? Eu sei quanto é, mas pra não ser traído pelo meu próprio cérebro danificado, será que posso dar uma checadinha na calculadora? Evitei fazer contas essa semana.


 
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Agenda e Bloco de Notas

Como trabalho com inspiração e criatividade – duas coisas que costumam dar as caras apenas em momentos inoportunos – tenho por hábito tomar notas de minhas ideias pra não esquecer. Da mesma forma, registro compromissos e até as mais simples tarefas por escrito, para não ocupar espaço na minha gaveta de preocupações. Lembrar das coisas definitivamente não é o meu forte e muitas vezes aquela ideia genial de site colaborativo para salvar a mata atlântica usando memes pode se perder antes de ser gravada em minha memória de longo prazo. Dito isto, crio coragem para confessar que descobri apenas esta semana pra que servem aqueles bloquinhos coloridos que chamam de “post-it”. E descobri que ainda sei escrever usando minhas próprias mãos e uma caneta, mesmo que num idioma híbrido de português brasileiro com caracteres ocidentais e código binário em hieróglifos. Japonês em braile. Melhor assim, com criptografia.


 
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GPS

Se existe uma deficiência humana que supro constantemente com tecnologia é minha completa ausência de noção geoespacial. Por isso confesso que esta foi uma seara particularmente difícil da minha semana: olhar endereços no Google Maps antes de sair de casa, tomar nota de tudo (ver item anterior) e partir na certeza de que em algum momento do trajeto vou estar completamente perdido. Os nostálgicos vão gostar de saber que pude desfrutar do velho hábito de parar o carro pra pedir informações a transeuntes – por mais que essas informações só tenham piorado as coisas. Nada como olhar nos olhos de alguém mandando você pegar a terceira à esquerda, depois à direita no sinal e dar a volta na praça. Por baixo. E esquecer no primeiro semáforo.


 
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Joguinhos

Ficar sem os poucos joguinhos que ainda me entretém durante os poucos minutos diários de intervalos fisiológicos foi outra coisa surpreendentemente relevante para a minha rotina. Descobri uma tecnologia portátil muito interessante de nossos ancestrais. Chamam-se “livros”. E sempre correm o risco de molhar no banheiro.


 
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Câmera

A câmera do celular é outro importante departamento de terceirização da memória humana. Costumo usá-la para saber em que vaga do estacionamento parei meu carro, ou o telefone do restaurante que está pintado na fachada por onde passei sem tempo pra anotar. Sem falar nos momentos especiais que merecem um souvenir imagético. Se é verdade que a revolução não será televisionada, creio que outra regra não-escrita da vida é que a melhor parte dela não pode ser postada no Instagram. Imagina o escândalo na família. Aprendi, um dia após o outro, nesta duradoura semana, que é possível viver as coisas mais maravilhosas da vida sem tirar foto de tudo e postar na internet. Dói um pouco, mas você logo percebe que é só a febre indo embora.


 
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Mensagens, emails e redes sociais

No meio de uma reunião, toca a campainha. Você precisa parar tudo que está fazendo pra checar, afinal pode ser um email importante de trabalho. Era uma piada sobre a Dilma no grupo de WhatsApp da faculdade. Ou um email comercial com uma imperdível proposta de parceria caracu. Ou um comentário cristão da minha tia-avó no Facebook. Ficar sem smartphone reduz drasticamente o acesso que os problemas têm a você. E me permitiu colocar em prática uma estratégia fundamental para a vida: reservar um momento específico do dia para conferir mensagens e notificações – ao invés de, como costuma ser normalmente, me preocupar com isso o tempo todo e reservar um momento do dia para viver.


 
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Telefonia

Pois é, já ia me esquecendo desta inusitada função de um “telefone esperto”. Mas além de tudo, eles fazem e recebem ligações. Grande oportunidade para relembrar como funciona aquele aparelho abandonado no canto da sala, o telefone fixo. Esperar o sinal antes de discar me fez sentir a bordo de um Delorean rumo ao passado. Em alguns momentos achei que ia ter que “pedir linha” para a telefonista. Era uma gravação. Verifique o número discado e tente novamente.


 
Em resumo, posso dizer que a ausência da ferramenta tecnológica me permitiu enxergar vários comportamentos nocivos e regalias que eu mal percebia que tinha. E, enfim, enxergar a mim mesmo – numa selfie impossível de ser batida com a câmera frontal.

Afinal de contas, não é a tecnologia que nos tiraniza, mas nossa eterna preguiça de delimitar seu uso para uma esfera saudável.

 
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Por mais que eu tenha realizado este fetiche de viver como um hippie moderno – alguns chamam de “hipster” – ficar sem meu cinto de utilidades ao longo de sete extensos dias me fez perceber, em última análise, que a tecnologia é mesmo uma dádiva, da qual podemos e devemos usufruir de coração aberto.

Deus inventou o smartphone. O homem foi lá e desenvolveu a obsolescência programada.

 
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Um respiro contra a rebelião das máquinas.

 
Dedicado à Brisa e à Bianca, que fizeram do meu tormento um passeio no parque.