Diga-me com que carro andas, que te direi quem és.
Não sei se o ditado popular era assim, mas bem que poderia ser. Não conheço um bem material que possa indicar com maior precisão as características de uma pessoa do que o carro que ela dirige. Classe social, gosto pessoal, circunstâncias momentâneas e até a filosofia de vida de alguém pode ser percebida com uma breve análise da máquina que ela opera em suas indas e vindas pelo trânsito cotidiano.
Lembro-me de um exemplo marcante, que me mostrou essa estreita relação logo na adolescência, ao observar o ocaso de um amigo – cuja identidade não vem ao caso. Na época, ele era um jovem herdeiro de uma rica empresa familiar e, recém-chegado à maioridade, seus pais tiveram uma brilhante ideia: para o filho suprir seu desejo de autonomia sem se tornar mais um jovem delinquente motorizado, concederam-lhe apenas o direito de dirigir o carro da avó, a matriarca da família, que vinha a ser uma dessas antiguidades sobre rodas, com grande valor sentimental, mas todo reformado, ao gosto dos mais criteriosos colecionadores.
A estratégia pedagógica surtiu dois efeitos que pude perceber claramente. Primeiro, já que ao invés de um carro moderno e confortável, o rapaz dirigia uma preciosidade possivelmente roubada de um museu, não dava pra "tirar onda" de abastado com a galera (principalmente as gatas, sempre exigentes), a não ser pela excentricidade do carango (de vez em quando até causávamos certo alvoroço chegando de "banheira" na balada). Pode parecer uma análise boba, mas esse meu amigo acabou se mostrando mais humilde, solícito e aprazível pelo simples fato de dirigir uma "lata velha".
Segundo, e mais previsível, os cuidados que o carro demandava acabaram ensinando inúmeras lições ao jovem, que se tornou um condutor cauteloso no trânsito e zeloso com a manutenção do seu veículo. Parecia uma velha. Mais que a própria avó.
Depois que conquistou definitivamente a confiança dos pais (e da avó), esse meu amigo ganhou de presente um carro zero – seu primeiro carro de verdade, fabricado no mesmo século em que a civilização se encontrava atualmente. E ele ainda pôde escolher o modelo.
Fugindo um pouco ao padrão das escolhas mais comuns dos outros garotões de sua idade, ele optou por uma Montana.
Pra quem não conhece, uma olhada no modelo mais recente:
"Robusta, com vocação para o trabalho, equipada com acelerador eletrônico, hodômetro digital, barras de proteção contra impactos laterais nas portas, brake light, roda de aço aro 14" ou 15", para-choques na cor do veículo e muito mais."
A primeira vez que eu o vi no carro novo, quase não reconheci. E ao mesmo tempo que eu estava feliz pelo amigo realizado, fiquei sem entender por que ele – que sempre andou com o carro cheio de amigos – preferiu logo uma caminhonete. Depois de umas cervejas na casa dele veio a resposta, profunda e enigmática: "Quando eu estou com uma pessoa, gosto de dar toda atenção para esta pessoa, e nada melhor do que a exclusividade para demonstrar importância."
Passei um bom tempo refletindo sobre o motivo que ele havia me apresentado, mas ainda desconfiava que o objetivo principal era usar a carroceria do carro para transportar as muitas caixas de cerveja com que costumava abastecer suas festinhas (acredite em mim, não cabia num carro esporte).
Até que um belo dia, consegui desvendar o mistério. Dentro do carro, meu sagaz amigo costumava carregar um colchão inflável e com alguns poucos movimentos ninjas, transformava sua Montana, já com tantas utilidades, num perfeito ninho de amor móvel ao ar livre.
Mesmo de carro novo, o cara não perdeu seu charme excêntrico.