Você acabou de sair do trabalho, meio apressado pra não perder a hora. Cai uma chuva fina, mas suficiente para deixar tudo mais chato e melancólico. E, claro, suficiente pra deixar o trânsito intransitável. Uma olhada no relógio e você percebe que não vai dar tempo de chegar em casa para o programa da noite. Felizmente, o mesmo relógio possui conexão em internet de alta velocidade, e você vai poder assistir a transmissão durante o caminho.
Sim, estamos no futuro, mas um futuro mais próximo até que o de Marty McFly. Você não é o único preocupado com o grande evento da noite: a maioria das pessoas já está em casa, mas os poucos que sobraram pela rua parecem preocupados em conectar seus aparelhos móveis.
Parece jogo de Copa do Mundo, ou final de novela das oito, mas é que hoje a sessão é importante: finalmente vão votar a Lei do Spam e Telemarketing, e parece que vai ter mais quórum que o recorde histórico do mês passado, quando votou-se a Regulamentação da Cannabis Transgênica.
CPF e senha, ou reconhecimento biométrico, para logar no legislativo.gov (do mesmo jeito que se acessa a receita.gov para pagar impostos e abrir empresas online). O relatório oficial da Comissão de Legisladores Voluntários esteve disponível (inclusive em vídeo) durante todo o mês anterior, para que a sociedade estabelecesse o debate final nas redes sociais e chegasse decidida neste dia.
Antes, contudo, ouviremos o pronunciamento do Presidente (o primeiro líder de Estado transexual do planeta, diga-se de passagem) e de representantes de diversos setores da sociedade, até que sejam abertas as votações aos cidadãos brasileiros.
O aplicativo trava, no meio do discurso do representante dos povos indígenas do Acre. E estava até interessante, tirando a dança típica. Tecnologia do governo é assim mesmo. Você reinicia o app, loga novamente, e lá está o velho índio dando seu parecer sobre o incômodo da propaganda involuntária, com a propriedade de quem não desliga o smart-chocalho nem pra fazer a dança da chuva.
Depois de toda ladainha, finalmente ativam a página do pleito. Você clica no enorme botão verde de aprovação da lei proposta, confirma seus dados e – voilà! – democracia direta exercida com sucesso! Nem dá pra acreditar como se viveu tanto tempo sob a fraude da “representatividade”…
A internet, enfim, mostrou a luz no fim do túnel para a falácia da democracia brasileira. Lembro que antigamente tinha gente que até reclamava de quem debatia política nas redes sociais, mas este hábito mostrou-se incrivelmente saudável para as transformações que viriam.
Ano após ano, eleição após eleição, o sistema político tradicional foi ficando cada vez mais desacreditado, enquanto os debates e polêmicas repercutidos pela internet ganhavam cada vez mais destaque no processo. Até que o lobby dos velhos coronéis e caciques da política não conseguiu dar conta das manifestações – online e offline – cada vez mais incendiárias destas novas gerações de “vândalos intelectuais” (as reivindicações foram prontamente atendidas pelas autoridades assim que começaram a ser apresentadas em forma de poesia).
Os referendos online foram estabelecidos logo após a Reforma Política com o 3º Marco Civil da Internet (pra quem ficou curioso, o 2º teve a proibição de “kibes”, “selfies” e “duckfaces” como pauta central). Incrível como logo no primeiro ano de aplicação do novo sistema foram votadas e aprovadas a Lei de Entorpecentes, a Lei do Aborto, a Lei do Estado Laico, a Lei do Casamento (e Divórcio) Gay, a Lei da Igualdade de Gêneros e Transgêneros, a Lei Geral da Polícia, a Lei da Ficha Limpíssima e a Lei de Imprensa (que vetou expressamente a gravação de novos episódios de “Malhação”), dentre outras novas leis revolucionárias.
E pensar que tudo começou há pouco tempo com uma disputa acirrada – quase sempre, não muito racional – de visões políticas antagônicas compartilhadas nas redes sociais. Às vezes até na forma de “memes”. O que não é de todo inesperado: cada salto tecnológico provoca um certo retrocesso de linguagem, até que o ser humano aprenda a se comunicar devidamente usando suas novas ferramentas.
No fim das contas, fomentar o debate, vejam vocês, virou sistema político. Desde então, “apertar o verde” finalmente ganhou uma nova conotação.
Como dizia Bertolt Brecht, o pior cego é o que não quer ver.
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O exercício imaginativo é livre, mas pelos meus cálculos estamos fechando o primeiro parágrafo dessa história. Palpites sobre o futuro da democracia são bem vindos nos comentários do post!