USP: Notas sobre uma esquizofrenia conveniente


 

Autor: Tony Monti

Estudei na USP por muito tempo, graduação, mestrado, doutorado. Ainda venho à biblioteca para ler e escrever. Oficialmente, há alguns meses não sou aluno da universidade. Neste instante, escuto daqui as vozes dos alunos em assembleia. A 300 metros daqui, a reitoria está ocupada por alunos. Os fatos se repetem. Gostaria de dar alguns palpites desarticulados.

Carlos LatuffA cidade universitária é um espaço estranho. Ele é em alguns contextos integrado à cidade e em outros isolado dela. Quando uma parcela dos frequentadores do campus quer a PM fora da universidade, eles se alinham com as situações em que a USP se afasta das leis urbanas. Por virar as costas para a cidade, o campus deixou também de ter uma estação de metrô.

À primeira vista, pode parecer que são sempre os mesmos grupos que defendem um dos dois lados da estrutura, incluir-se na cidade ou excluir-se dela. Não acho que seja assim. Para o grupo que usualmente ocupa o poder, a esquizofrenia é conveniente. Pode-se querer integrar os elementos da cidade que reforçam a autoridade do reitor, sem ter que abrir a universidade a um debate público sério.

Fica mais fácil assim acusar o grupo opositor de “machonheiros que escondem o rosto como bandidos” a partir de uma estrutura autoritária e fechada da universidade, ainda que, à primeira vista, a entrada da PM seja uma abertura dos portões. Troca-se uma questão política que envolve o governador e a estrutura de Estado por uma questão moral rebaixada, três pessoas supostamente fumando maconha.

Imagino, sem saber a resposta, se não seria melhor abrir os portões para todo mundo, o tempo todo.

André Dahmer

A cidade universitária é um lugar esquisito também porque parece que muito é feito para isolar. Os prédios são distantes e alguns dos frequentadores do campus acabam não convivendo para além do seu grupo de trabalho ou estudo específico.

O campus da universidade não é mesmo um lugar seguro. Há grandes espaços vazios, escuros, ermos. A segurança desses espaços é complicada. Suponho que iluminação e câmeras de segurança poderiam resolver em parte os problemas.

Àqueles que estão preocupados com o uso de drogas, com delinquência e com a criminalidade associada, sugiro frequentar a USP e depois dar uma passada na cracolândia. A lei não é uma faca tão afiada assim, ela responde a interesses que não são neutros. Há atos ilícitos em toda a cidade. Abordar alunos que supostamente fumavam maconha me soa como provocação e demonstração de um poder moralista e enviesado, além de, como já foi dito, reduzir uma questão política ampla a um delito (suposto) isolado e com consequências restritas.

Carlos Latuff

A universidade não é uma só. Além do enfrentamento político, é evidente que uma parte do campus é mais bem tratada que o outra. Caminhe pelas diferentes unidades, pelas salas de aula e verifique a aparência dos locais. Na FFLCH, há alguns anos, houve uma greve pela contratação de professores porque havia disciplinas com mais que duzentos alunos matriculados (ainda que dar aula para 200 alunos pudesse ser um método pedagógico, não havia espaço físico para receber tantos alunos ao mesmo tempo). Por motivos assim, há greves. Poucos anos antes, também na FFLCH, instalaram ventiladores nas salas de aula. Um deles desabou do teto. Para não machucar ninguém, todos os demais foram desligados. Justo. Na FEA, a poucos metros dali, havia já cadeiras estofadas e ar condicionado, acabamento de primeira no chão e nas paredes, turmas pequenas. Onde você acha que a placa que diz que há internet sem fio corresponde a uma rede wi-fi estável? Onde você acha que os computadores funcionam?

É muito difícil gerir um espaço assim. Não existe uma USP homogênea, nem um aluno, nem um professor, nem um funcionário. Há vários. É óbvio. Mas há um perigo quando se responde a esta fragmentação de pensamento com uma simplificação absurda que diz que de um lado estão os corretos e do outro estão os maconheiros. Inventaram um pacote de características fixas para cada lado. Aderir a uma ideia ou comportamento de um lado seria como comprometer-se com um partido. O debate fica suspenso. A universidade, que deveria ser um espaço de discussão, da palavra, passa a ser um lugar onde o detentor do poder elimina o outro com a força (policial). A ocupação da reitoria pode não parecer para alguns um método razoável, mas o que fazer quando o comportamento dos ocupantes de cargos de direção na universidade têm um governador, uma lei que distribui mal o poder no campus e a polícia a seu lado? Não foi a ocupação da reitoria que suspendeu o diálogo. É bastante óbvio que a polícia no campus cumpre um papel político que ajuda a suspender o debate público.

Não vejo solução. Invadir a reitoria faz barulho fora dos muros do Campus. Acho importante. Mas isso não tem comovido a opinião pública, que vota no governador e que poderia fazer pressão em quem tem poder para decidir. Não consigo imaginar uma estratégia, mas suponho que qualquer uma passaria por conseguir explicar para pessoas fora do campus e para os contrários à ocupação(dentro do campus) que a situação tem mais nuances do que uma briga de torcidas. As pessoas que invadiram e ocuparam a reitoria não são ogros truculentos acéfalos e inconsequentes.

A politização, se for possível, é um processo, não é um decreto. Leva tempo.

– – –

Leia e comente o artigo do genial Tony Monti.