Chega de viadagem


Felizmente eu tive uma boa educação sexual. Sinto que devo muito aos meus pais por terem sido liberais e pedagógicos também nessa área.

Aos seis anos, quando me informaram que eu iria ganhar um irmãozinho, quis saber mais sobre essa história de cegonha. Ganhei explicações ilustradas (meu pai é desenhista) e até um livro da Marta Suplicy (se naquela época eu soubesse que teria a mesma orientação que o Supla talvez nem tivesse lido). Como sempre tratavam o tema naturalmente em casa, e também aprendi sobre educação sexual na escola com uma abordagem tranquila, cresci num ambiente que considero ideal para desenvolver uma sexualidade sem neuroses. Até um almanaque ilustrado contendo milhares de verbetes relacionados a sexo tinha na prateleira mais alta da biblioteca de casa. Foi muito útil no futuro.

Imagine hoje, essa criançada com internet.

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Também foi com essa meia dúzia de anos que ouvi falar a primeira vez em “ser viado”. Já conhecia o bullying (não a palavra, mas o ato) cotidiano em relação a ser gordo, mas sinceramente lembro que desde aquela época não me incomodava tanto os apelidos como “Jô Soares” ou “Faustão”, que ao meu ver pareciam adultos até legais. E sendo gordo, pelo tamanho, também já conseguia me impor um pouco entre a molecada. Mas um dia ficou marcado na minha memória pela euforia súbita e completa da turma. Era comigo.

Meu pai tinha ido me buscar na porta da sala de aula pela primeira vez, e já usava um brinco na orelha desde aquela época, final dos anos oitenta. Lembro que eu não tinha entendido porra nenhuma mas certamente fiquei magoado com os gritos histéricos de “brinquinhooo”, “viadooooo”, “seu pai é viaadooooo”… Meu pai, consternado, me explicou com uma tranquilidade que na época não me fazia sentido, que ser viado não era problema nenhum. Inclusive mencionou o nome de algum amigo dele que eu conhecia e gostava, que era viado (a velha cartada do “até tenho amigos que são”). E completou esclarecendo que homem usar brinco não tinha nada a ver com isso, era inclusive considerado “normal” em países mais avançados, me mostrou capas de discos, etc.

Eu e meus irmãos, heterossexuais até o fechamento deste texto, tivemos as orelhas furadas algumas vezes na vida, e meu pai ainda tem. As duas, pra nem virem falar que de um lado é afeminado e do outro não.

 

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Também foi muito importante pra minha formação ter convivido desde cedo com amigos viados.

Alguns não tinham nem idade pra terem se descoberto direito, mas eu sempre suspeitei, e o tempo confirmou. Outros já vieram ao mundo num musical de Glee.

Mais velho tive um amigo advogado criminal (sim, eu já precisei de um algumas vezes) que era “o viado mais macho” que já conheci. Peitava juiz, dava porrada em traficante, um porra-louca. Pra quem o conhecia, era um amor. Falava de coisas sérias e de putaria com a mesma naturalidade e conhecimento de causa. Curtia a vida adoidado, dizia que era preciso viver tudo que há pra viver porque podemos morrer a qualquer momento. Morreu atropelado por uma Hilux que não o viu sobre a sua moto – este meio de transporte imbecil do inferno.

Um dos nossos debates mais acirrados foi sobre a Parada do Orgulho Gay. Na opinião dele, o comportamento dos “militantes” de sunga de couro ao som dos hits de Lady Gaga eram totalmente prejudiciais à causa, pois trariam sempre arraigados a ideia de que viados são todos desequilibrados e hiper-sexualizados. Como sempre tendo a ir pelo viés mais liberal, eu retrucava dizendo que era preciso chocar pra chamar atenção a qualquer causa, e que a sociedade conservadora iria perder pelo cansaço e acabar se acostumando a posturas mais “escandalosas”. Por isso ainda prefiro que existam personagens afetados caricatos em novelas do que simplesmente não existam gays na trama – ainda mais quando eles são tantos, enrustidos, no elenco.

Na minha cabeça o conservadorismo sempre foi tão sem sentido que espero permanentemente pela oportunidade de vê-lo em ruínas. Não que eu goste de aturar as horas ininterruptas de músicas gays nos carros de som da parada paulista – que passam exatamente em frente à minha varanda. Mas é um sacrifício que faço anualmente, afinal, incomoda o mesmo tanto ou menos que qualquer outra manifestação política ou cultural que não seja a sua.

 

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Ano passado saí pra passear com o cachorro logo depois que finalmente tinha acabado o desfile de figurantes de Priscilla, a Rainha do Deserto e componentes do Village People. Na primeira esquina, um sujeito esquisito de cabeça raspada e roupas militares começou a brincar com o bicho e depois de quase convencer como um ser humano afetuoso, comentou que tinha chegado atrasado pra parada gay – o que era compreensível devido à roupa esquisita. Ele esclareceu, contudo, que o que queria na verdade era “bater nesses viados”. Saí de perto imediatamente pra evitar qualquer interação adicional. Não tenho a pretensão de educar gente maluca.

A não ser pela internet, claro.

Afinal, se não damos o azar de encontrar um skinhead todo dia, é muito fácil dar de cara com afirmações doentias desse tipo na internet. Cada vez menos, felizmente, graças a algorítimos e opções de bloqueio, mas ainda com uma lamentável frequência entre as opiniões emitidas a todo momento.

 

 

Enquanto o assunto parece estar mais do que bem resolvido pra uma boa parte das pessoas, beijos gays no horário nobre ainda viram pauta de protestos e a bancada evangélica permanece intervindo em todas as necessárias políticas de inclusão e conscientização.

E o preconceito se manifesta também de formas menos radicais: velado, por exemplo, no mercado de trabalho. Não por acaso, conheço alguns amigos que não podem sequer assumir seus relacionamentos homoafetivos publicamente devido à necessidade de manter “máscula” e “ilibada” sua imagem pública. E não estou falando do Felipe Neto, apenas.

Por isso, desde sempre, encampamos campanhas e conteúdos relacionados à causa gay aqui no TRETA. Minha empatia é tanta que às vezes rola um mal-entendido e recebo umas cantadas masculinas. Só que isso não me causa um constrangimento minimamente comparável a entrar na home do Facebook. Dependendo da abordagem, acho até lisonjeiro e explico tranquilamente que já sou compromissado com Jesus.

Cada um sabe o Messias que tem.

 

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O que me deixa fodido da cabeça de verdade é ter que escrever um texto em pleno 2015 pra falar de algo que deveria ser óbvio, claro e evidente: cada um que cuide do seu cu.

Porra, a parada é tão individual que cada um tem o seu, e fica muito bem escondido no meio de uma bunda. Eu me sinto constrangido sequer de imaginar que certas pessoas têm cu, quanto mais de querer me meter no uso que elas fazem de tal orifício.

Odeio casais gays se pegando loucamente do meu lado? Claro. Do mesmo jeito que odeio casais héteros, casais albinos ou casais anões. Mas o problema obviamente sou eu que estou sobrando no rolê e não posso desaparecer num passe de mágica, e não o casal que está ali fazendo a melhor coisa que se pode fazer na vida. Saliência.

O sentimento mais sublime do universo inteiro não pode ser ofensivo. Quem se ofende é que tem algum problema com o universo.

Ou com o próprio cu.

 

 

Portanto, chega dessa viadagem!

Chega dessa frescura heteronormativa de associar sexualidade a caráter – ou virilidade, ou promiscuidade, ou qualquer outra coisa. Chega de compactuar, ainda que subconscientemente, com essa moral careta cheia de rótulos e preconceitos. Chega de se esconder atrás de privilégios sociais pra levantar bandeiras moralistas. Chega dessa putaria.

A conduta de quem não tem coragem de se posicionar claramente em relação a esta questão diz muito mais sobre o caráter de qualquer pessoa do que o formato da genitália que ela chupa. Se formos pensar friamente, não militar diariamente na causa gay, dentre tantas outras, é que seria uma grande viadagem – no sentido pejorativo que o senso comum tenta imprimir.

 

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Proponho que todas as pessoas nesta situação saiam de seus armários imediatamente e comecem a tomar vergonha na cara.

Porque até agora, viado é que tem sido sujeito homem, cabra macho.

Nós, heteros, somos todos umas bichonas.