A pergunta não quer calar há um bom tempo, e o que não faltam são candidatos para tentar responder com trocas de acusações. A culpa é do forte opressor. A culpa é do fraco que se deixa ser oprimido. A culpa é sua. A culpa é da maçonaria, dos Illuminati. A culpa é de Deus, conspiração do universo, desde que o mundo é mundo. A culpa é do sistema, e o sistema é foda. As coisas simplesmente são assim.
Só que me atrevo a dizer que essas tais coisas que sempre foram, andam diferentes como nunca. Os olhos e bocas de todos estão por todo lugar, conectados globalmente para observar e interagir com a História. Os valores estão sobre a mesa, para apreciação pública, e com os debates dinâmicos de hoje em dia, os melhores tendem a vencer, mesmo que após intensas batalhas em longas guerras. Se algum dia alguém sonhou com as primeiras aspirações democráticas, certamente estaria feliz de viver com as atuais perspectivas de transformações políticas e sociais.
Mais do que nunca (como diria o Fausto) temos o privilégio de não tomar as atitudes ou endossar as opiniões erradas, e a desesperança no futuro vai se tornando uma desculpa esfarrapada para os que têm preguiça de romper com a frustração existencial, dispensar maniqueísmos e comprar essa briga contra o establishment.
Somos uma legião cada vez menos anônima.
No meio do contraste de ideias, revelam-se alguns pontos brilhantes. Três deles me chamaram a atenção nesta semana que se passou. O primeiro é esta campanha contra o estupro promovida por um grupo de humoristas de Mumbai, na Índia. Infelizmente, a ironia contida no vídeo não é tão evidente quanto deveria para todo mundo…
O segundo é esta carta que um avô escreveu para sua filha em defesa do neto, questionando severamente o fato de ela ter expulsado de casa o rapaz simplesmente por se revelar homossexual:
Cara Christine,
Você me desapontou como filha. Você está certa sobre termos uma “vergonha na família”, mas errou sobre qual.
Expulsar seu filho de sua casa simplesmente porque ele disse a você que era gay é a verdadeira “abominação”. Uma mãe abandonar o filho é que “é contra a natureza”.
A única coisa inteligente que ouvi você dizer sobre tudo isso é que “não criou seu filho para ser gay”. Claro que não criou. Ele nasceu assim e escolheu isso tanto quanto escolheu ser canhoto. Você, entretanto, fez a escolha de ser ofensiva, mente-fechada e retrógrada. Então, já que esse é um momento de abandonarmos filhos, acho que chegou a hora de dizer adeus a você. Sei que tenho um fabuloso (como os gays dizem) neto para criar e não tenho tempo para uma filha que é uma vadia sem coração.
Se encontrar o seu coração, ligue pra gente.
-Papai
E a terceira, com a qual encerramos nosso passeio pelo paradoxo do senso comum, um pequeno texto com palavras maiúsculas em letras minúsculas do escritor João Paulo Cuenca, sobre a responsabilidade coletiva pela opressão policial (e política) aos manifestos promovidos por professores no Rio de Janeiro:
a mídia, os artistas, o medo e o silêncio
você, articulista de jornal, rádio e tv, que ajudou a criminalizar os protestos e abriu espaço para a porrada da polícia no povo: a culpa é sua.
você, editor preguiçoso, que jamais contou o número de manifestantes feridos, mas sim o número de cacos de vidro no chão: a culpa é sua.
você, repórter, que fechou uma matéria sem ouvir nem sequer um manifestante, comprando a versão da PM como fato depois de décadas de assassinato e abuso: a culpa é sua.
você, profissional liberal com voz na sociedade, que prefere não emitir nenhuma opinião porque tem medo de perder o emprego, o contato, a boquinha ou a pulserinha na área VIP: a culpa é sua.
você, indigente intelectual militante de "esquerda", que fica quieto para manter seus negócios, conchavos ou empreguinhos no governo dilma ou cabral: a culpa é sua.
você, escritor, cineasta, diretor de teatro, ator, músico, artista plástico, que se cala com medo de queimar seu filme para os próximos editais, prêmios, bolsas e regadores de mão oferecidos pelas três esferas de poder estatal: a culpa é sua.
chegou o futuro: somos todos políticos agora. o silêncio é a sua mão suja.
Enquanto não estamos agindo em contrário na praça, a culpa é nossa.
Ela é muito nossa.
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Felizmente, existem Razões Para Acreditar.